Mozart e Salieri |
Nem todas as lendas no mundo da música
surgiram na modernidade, algumas são centenárias, a que tratarei agora vem
diretamente do século XVIII e trata da morte de um dos maiores compositores da
história, Johannes Chrysostomus Wolfgangus Theophilus Mozart, cujo nome
artístico (isto também não é coisa moderna) foi Wolfgang Amadeus Mozart.
A lenda diz que a genialidade de Mozart era
tão grande que despertou um sentimento de inveja no compositor oficial da corte
austríaca, o italiano Antonio Salieri, que dava aulas para o próprio imperador
Joseph II.
A fama de Mozart era grande já desde criança,
compondo com apenas cinco anos de idade e se apresentando por toda a Europa
como músico prodígio levado por seu pai e acompanhado de sua irmã também muito
talentosa, essas turnês duravam muitos meses e se repetiram até a idade de 25
anos, quando passou a trabalhar como músico independente na capital, Viena. Parece
que Salieri a princípio ficou curioso para conhecer aquele rapaz de que todos
falavam tão bem, mas teve uma grande decepção ao descobrir que aquele gênio era
também um excêntrico quase despudorado, com uma personalidade infantilizada e
ainda debochado em relação aos outros músicos.
Ao ser introduzido na corte, na presença do
próprio imperador que queria conhecer o tão afamado artista, Mozart desdenhou
uma composição que Salieri compôs em homenagem ao visitante, interpretando com
absoluta perfeição ao cravo (um instrumento antecessor do piano) a música que
acabara de ouvir e ainda improvisando melhorias na composição que ele achou
simplória, surgiu aí ao mesmo tempo uma grande admiração e um ódio de Salieri
pelo artista abençoado por Deus e ao mesmo tempo uma pessoa desprezível.
Durante muitos anos Salieri fingiu ser amigo
de Mozart, mas fazia de tudo para boicotar seu inimigo secreto na corte, o que
gerou problemas financeiros e de popularidade para Mozart. Sabendo destas
dificuldades e que ele dava sinais de insanidade, Salieri resolveu criar uma
farsa em que iludia o compositor fazendo com que ele associasse a imagem de um
mascarado com a figura de seu próprio pai morto e ainda conseguir encomendar
uma obra musical genial que ele pretendia apresentar como sua. Achando que
estava compondo um réquiem (composição fúnebre) para seu próprio funeral, Mozart
trabalhou alucinadamente até a exaustão enquanto Salieri o envenenava
lentamente. Como a composição demorava para ser concluída ele ficou doente
antes do que Salieri pretendia, então fingiu ajudar Mozart no leito de morte
anotando as partituras que ele recitava de cabeça, mas apesar de seu esforço
para terminar a obra e tomá-la para si, acabou ficando sem as anotações finais,
de modo que o Réquiem acabou creditado a Mozart.
O atestado de óbito dava a causa mortis como febre miliar aguda,
mas uma semana depois uma publicação alemã criou a suspeita de envenenamento. Mozart
acabou sendo enterrado como indigente, sem testemunhas, em um local desconhecido,
deixando sua viúva e dois filhos em situação financeira complicada.
Muitos anos se passaram e Salieri corroído
pelo remorso enlouqueceu, foi internado em um hospício onde, nos últimos anos
de vida (1823), era ouvido gritando em seu quarto...
“...eu matei Mozart,
eu matei Mozart...”
Esta é a história contada pelo escritor russo
Aleksandr Pushkin que em 1830 escreveu seu drama, Mozart e Salieri, que depois se
transformou em uma pequena opera com um ato e duas cenas de Rimskji-Korsakov com
o mesmo nome em 1898. Depois o escritor Peter Shaffer escreveu a peça de teatro
intitulada Amadeus em 1970, repercutindo e ampliando a lenda que finalmente deu
origem ao filme de Milos Forman, também chamado Amadeus em 1984 e que ganhou
oito Óscares. A partir daí esta é a versão mais popular sobre o que aconteceu
com o grande compositor austríaco.
Mas os estudiosos da história da música dizem
que tudo foi bem diferente:
Salieri em sua época foi muito mais famoso
que Mozart, ele era o compositor do imperador, suas muitas óperas eram
prestigiadas, era um professor concorrido (chegou a dar aulas para Beethoven,
Liszt, Schubert e o filho mais novo de Mozart) e era bem pago por tudo o que
fazia. Já Mozart era um espírito livre, procurava o que havia de mais moderno
na música de seu tempo, nem sempre era compreendido embora fosse bastante
popular, mas como foi durante toda a vida um viajante que se apresentava quase
como um artista circense da música, havia desconfiança dos empregadores da
corte e dos mecenas (ricos que financiavam artistas) sobre a confiabilidade do
compositor, de modo que não conseguia ser contratado para um trabalho fixo,
tinha muitos altos e baixos embora nunca tenha passado necessidade, mas também
nunca chegou a ser rico.
Seu corpo foi velado na catedral de Viena,
mas naquele dia havia uma forte tempestade e nevasca, de forma que a família de Mozart não
acompanhou o caixão, mas ironicamente há indícios de que um dos presentes no
momento do enterro foi Salieri junto com alguns outros músicos. Foram feitas muitas homenagens a Mozart em
Viena e também em Praga onde suas óperas eram muito populares.
Há um suposto crânio do compositor que foi apresentado por um coveiro em 1801 e que foi submetido a vários testes e comparações genéticas, mas os resultados foram inconclusivos.
Apesar da grande popularidade de Salieri, ele
era um compositor conservador, então sua obra se diluiu com os grandes músicos de
sua época, o período Clássico, já a obra de Mozart foi muito influente no período
que surgiu pouco tempo depois, o período Romântico, embora não tenha composto
nada que se enquadrasse no estilo romântico, é bem provável que ele tenha dado
aulas para o maior compositor deste período, Beethoven, então Mozart produziu o
que havia de mais arrojado em seu estilo e provavelmente, se não tivesse
morrido tão cedo, teria composto grandes obras primas de um novo estilo e teria
sido ainda maior do que já é. Também não morreu na miséria, deixou várias obras
inéditas que foram negociadas pela viúva e também algum patrimônio,
principalmente em instrumentos musicais. As cartas desta época não indicam
nenhum problema de depressão por parte do compositor, na verdade ele parece bem
feliz.
Apesar do que se vê no filme Amadeus, Salieri
era apenas seis anos mais velho que Mozart, quando se conheceram um tinha 25 e
o outro 31, Salieri tinha mais intimidade com a vida reservada da corte, e
Mozart era um homem viajado e descrito como tendo uma personalidade descontraída,
porém nada que indicasse um desajustado social, como no filme. Os indícios
históricos revelam que na verdade eles se davam bem, tendo inclusive composto
uma Cantata (Per la ricuperata salute di Ofelia) em conjunto, obra descoberta
há pouco tempo em Praga, na República Checa. Então a lenda parece ser uma inversão
do que poderia ser a realidade, se alguém tinha motivos para inveja, não seria
Salieri e sim Mozart, isto aparece em algumas cartas do compositor que se
referia com algum despeito à popularidade de Salieri.
Parte da Cantata composta por Mozart e Salieri |
Outra coisa errada na lenda é que o Réquiem não
foi terminado por Mozart, alguns trechos estavam incompletos e foram terminados
por dois de seus discípulos a pedido da viúva. A verdade é que Mozart realmente
foi contatado por um homem mascarado que encomendou a obra, mas se descobriu
posteriormente que se tratava de um compositor amador, o conde Franz von
Walsegg-Stuppach, que encomendava composições e as apresentava como de sua
autoria. Outra curiosidade é que após a edição do Réquiem a primeira execução
completa da obra aconteceu no Brasil em 1819.
Mozart não chegou a completar 36 anos de
idade e seu médico diagnosticou a morte como resultado de “febre miliar aguda”
e a medicina nesta época era bem precária, o mais provável é que uma das várias
doenças que Mozart teve na infância tenha deixado sequelas por toda sua vida e se
manifestado de maneira fatal em um período posterior, provavelmente a febre reumático-inflamatória
diagnosticada por várias vezes quando ele era criança, nesta época não se tinha
nenhum conhecimento sobre infecções e as pessoas morriam de forma repentina e
banalmente como resultado do próprio tratamento dos médicos. Há estudos
modernos analisando os diversos sintomas descritos sobre os últimos momentos do
compositor que corroboram que ele não morreu por envenenamento.
Não se sabe se a história de que Salieri
teria feito a tal confissão no hospício seja verdade, mas caso tenha realmente
ocorrido ainda resta a dúvida de que sejam palavras de um homem perturbado e
influenciado pelas histórias que ele ouviu de outros, afinal alguém pode ter
questionado o pobre insano que acabou fantasiando tudo no final da vida. Ainda
assim há registros escritos de Salieri em cartas para seu pai onde confessou
sentir alguma inveja de Mozart, mas ainda em suas boas faculdades mentais rechaçou
as insinuações dirigidas a ele sobre o suposto envenenamento.
Outra teoria conspiratória é que Mozart teria
sido morto pela Maçonaria por ter revelado segredos maçônicos em sua ópera A
flauta mágica. Mozart realmente era maçom desde 1784, mas os símbolos maçons incluídos
na ópera não são revelados em momento algum, só são entendidos pelos iniciados.
Provavelmente seus irmãos maçons já estavam cientes do conteúdo da ópera antes
mesmo de ela entrar em cartaz.
Outra teoria ainda menos aceita é de que
Mozart tenha sido envenenado por um marido enciumado que suspeitava da traição
de sua esposa, aluna do compositor.
A lenda pode ser verdade ou mentira, mas isso
não interfere no que ele foi em vida e ele continua vivo em suas mais de
seiscentas composições, algumas delas muito conhecidas em todos os cantos do
planeta.
No vídeo, Lacrimosa, do Réquiem de Mozart, com regência de Herbert von Karajan.
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